Não sei por onde começar. A história na verdade não tem começo, eu tenho para mim inclusive que ela nem começa, ela só é. Talvez se inicie na pré-adolescência, quem sabe na infância, ou ainda (é possível) numa sessão de terapia de auto-conhecimento. Não sei onde, quando, porquê. Sei que, se é pra começar de algum lugar, eu começo dizendo que gosto de gatos.
Eu nunca pude ter um gato em casa, então me acostumei a ficar admirando os bichanos de longe. Tinha medo de chegar perto, achava que eles eram criaturas instáveis, poderiam me arranhar, machucar. Mas sempre os achei lindos, e criei uma certa identificação com eles. A destreza, a desconfiança, o andar felino, os olhos que parecem atravessar sua alma. E ainda tem todas as lendas e mitos sobre gatos, e a enorme conexão com magia. A ligação com o mundo do éter, do intuitivo, do inconsciente, da sabedoria profunda, dos medos, dos mortos, de Perséfone. É, eu tinha muita coisa em comum com os gatos, embora só eu soubesse - ou melhor, nem eu soubesse.
Agora registro meu marco temporal, apesar de esse marco ser fluido. Um dia algo aconteceu. Simples assim, mas tão mais complexo do que isso, pois era uma rede de vivências e paixões, não aconteceu algo em um dia, aconteceram vários algos em muitos dias de minha vida que culminaram nesse dia sobre o qual vos falo agora. Peço desculpas pela prolixidade, mas apenas tento passar minhas sensações mais verdadeiras sobre o ocorrido: não foi em um dia que aconteceu, foi em muitos, o tempo não é nada nessas horas de epifania, gosto dessa palavra, epifania. Nesse dia, olhe só, eu vi um gato morto.
O que há de novo em ver um bicho morto nas ruas da cidade?, vocês podem questionar. Nada, eu responderia. Nada. Mas Vinícius me vem à cabeça, "nada parece mais com o fim de tudo que um gato morto", e acho que naquele dia, que não foi um, foram vários, eu compreendi esse soneto, por sinal, o soneto com a chave de ouro mais dura que eu conheço, não que eu conheça muitos, mas enfim. O gato estava lá, no chão, no meio da rua, tinha sido atropelado, os olhos saltados, o corpinho amassado, deformado, grudado ao asfalto, sangue por toda a parte. Nó na garganta. Queria chorar, não entendia por que, o gato nem era meu, e ainda por cima era um gato! Logo eu, que tinha aprendido desde cedo, como uma boa criança de classe média, a olhar para o outro lado quando uma pessoa morria de fome ao meu lado na rua, agora submergia em mim tentando manter a postura firme, não vou chorar, não sou louca, não há motivo.
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Onze da noite, está na hora. Os gatos devem estar esperando, eles agora esperam por mim embaixo dos carros aqui na frente de casa, há vários gatos de rua aqui pelo conjunto, eles hoje não precisam revirar o lixo. É difícil ganhar a confiança deles, eles são ariscos, mas quando estou sozinha com eles me sinto plena, como se tudo estivesse no seu devido lugar, e eu fosse mais um espírito de gato no mundo, eles que ainda não perceberam. Divido minhas tristezas e paixões com eles, finalmente sinto como se alguém estivesse cuidando de mim, estou protegida - provavelmente uma inversão de valores, considerando que os gatos nem chegam muito perto de mim, mas quem espera sanidade de alguém que chorou ao ver um gato morto? Um deles parece demonstrar mais confiança, ou quem sabe ingenuidade, não deve estar há muito tempo nas ruas até porque parece ser filhote, lindo, todo tigradinho, acinzentado. Mais tarde descobri ser uma menina, e a batizei para mim mesma de Louise.
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A vida não se dá em ciclos, pois ela é uma face desse ciclo, é a Existência que se dá em ciclos de vida e morte, ou a Não-Existência, dependendo do ângulo que você olha, afinal, elas também se dão em ciclos. É tudo uma grande espiral, e nessa espiral os momentos se repetem, às vezes repetições tão diferentes entre si que somos incapazes de perceber a semelhança, às vezes cruelmente similares, como se surgissem para te testar, é a Roda da Fortuna, hoje é seu dia de azar, "o Fortuna, velut luna, statu variabilis".
Nesse dia, que também foram vários dias, mas que no calendário corrente foi apenas um dia, e bem distante daquele primeiríssimo, vi um gato morto. Não deveria ser outro dia, por favor, diga que o tempo está voltando, isso não aconteceu, eu já passei por isso! Mas não por um gato que você tem afeto, replicaria a Fortuna, se eu pudesse entendê-la. O gato estava molhado, jogado numa vala no canto da rua, chovia de leve, seu peito parecia estar aberto e ele sangrava na cabeça e no peito, era apenas um filhotinho, provavelmente atropelado, será que o motorista chegou a perceber o que fez? Parei o carro ao seu lado, fiquei olhando estática, aquela cena me doía mas eu precisava dela, eu tinha que ver, era meu filho, queria abraçá-lo, mas minha loucura ainda não havia chegado àquele ponto, as lágrimas caíam e eu não queria sair daquele lugar, eu não queria abandonar o gato, apesar de eu saber que não tinha mais o que ser abandonado, ele era só corpo, a chuva caía e ele nem piscava, não havia mais vida alguma ali.
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Esperei naquela noite, ainda tinha alguma fé, afinal, dizem que os gatos têm 7 vidas, isso quando não dizem que eles têm 9, por favor, que tenha sido outro gato, e ao mesmo tempo me corroía por ser egoísta a esse ponto, um gato é um gato, não importa se ele é mais próximo de você ou não, nenhum merece morrer daquele jeito. Eu já sabia, na verdade eu soube quando eu vi, mas eu não quis admitir, falei que não sabia, todos os gatinhos se parecem tanto, pode não ter sido o meu, mas era. Os gatinhos pretos chegaram para comer, o tigradinho adulto também, mas Louise, que sempre era a primeira a me acompanhar e aceitava todos os meus carinhos sem reclamar, nunca apareceu de novo. Naquele noite, eu chorei do mesmo modo que havia chorado para Louise quando minha vida parecia se desintegrar, ela não entendia nada, mas ficava olhando, curiosa. Dessa vez ela não poderia me olhar daquela maneira, ela estava lá, sendo devorada por insetos do outro lado da rua, e ninguém fazia nada, não havia nada a ser feito, a não ser chorar a morte de apenas mais um gato de rua.